Díli, 27 nov (Lusa) - Bacharuddin Jusuf Habibie reservou para si um lugar na história de Timor-Leste quando, numa histórica reunião do Conselho de Ministros indonésio de 27 de janeiro de 1999, admitiu pela primeira vez a possibilidade de um referendo aos timorenses.
A crise financeira dos tigres asiáticos - grupo constituído por Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Hong Kong -, que também fazia mossa na Indonésia, e a gota de água que foi uma carta do então primeiro-ministro australiano John Howard, empurrou o terceiro presidente indonésio para uma mudança histórica.
Uma decisão que ampliava a sua postura anterior - desde meados de 1998 que se começou a referir à possibilidade de alguma autonomia para o que então Jacarta considerava a sua 27.ª província.
Mário Carrascalão, na altura o governador de Timor-Leste nomeado por Jacarta e membro do Conselho Consultivo Nacional da Indonésia, tinha estado reunido com Habibie um dia antes, e a postura da autonomia mantinha-se.
Em entrevista à Lusa admite a "sorte" que Timor-Leste teve com a conjuntura do momento e reconhece ter ficado surpreendido com o anúncio, insistindo porém que Habibie atuou sempre em defesa dos interesses indonésios.
"O Habibie lutou pelos interesses da Indonésia. Não nos deu isto pelos nossos lindos olhos", recorda.
Nessa tarde, com os seus ministros, Habibie estava lívido, irritado com um relatório da sua principal assessora, Dewi Fortuna Anwar que confirmava o que já suspeitava: as portas a que a Indonésia batia para pedir ajuda financeira não se estavam a abrir.
Ou melhor, as portas abriam-se mas, depois de muitos anos em que a comunidade internacional ignorava os abusos cometidos pela Indonésia em Jacarta, os pedidos de ajuda indonésios eram recebidos com uma pergunta sem precedentes.
"A Indonésia estava numa crise financeira diabólica, queria empréstimos internacionais e não conseguia. Cada vez que batiam à porta de quem podia emprestar ouviam: what about humans rights in East Timor? E isso era contado ao Habibie", recorda Mário Carrascalão.
Com o garrote financeiro ao pescoço, crescente instabilidade interna e a Indonésia a lidar com o furacão que implicou o fim da era-Suharto - que tinha caído em 1998 - Timor-Leste consolidava-se como a tal "pedra no sapato".
Irritado, Habibie mostra aos seus colegas no Governo uma carta que ajudou a verter o copo: John Howard escreveu em dezembro para Jacarta a defender que, depois de um período de autonomia, deveria haver um ato de autodeterminação em Timor-Leste.
Richard Woolcott, embaixador da Austrália na Indonésia entre 1975 e 1978 - quando ocorreu a invasão - recorda os momentos históricos do início de 1999 e a evolução que abriria a porta à consulta de 30 de agosto aos timorenses e a primeira de várias guerras de Habibie com os generais indonésios.
Para Habibie, escreveu recentemente Woolcott, seria ilógico para a Indonésia continuar a financiar uma autonomia cara que poderia conduzir à independência mais tarde.
"'Porque temos este problema quando temos uma montanha de outros problemas? Recebemos petróleo? Recebemos ouro? Não. Só recebemos pedras. Se os timorenses são ingratos depois do que fizemos por eles, porque temos que manter isto", escreveu Woolcott, citando Habibie.
Por isso anunciou aos ministros que a Indonésia avançaria já para uma consulta entre autonomia e independência e "surpreendentemente só encontrou uma voz dissidente", a do seu chefe da diplomacia, Ali Alatas, que achava prematuro e perigoso dar independência quando os timorenses não estavam ainda preparados.
Os ministros económicos ficaram satisfeitos com a eventual poupança, alguns ministros da ala mais islâmica ficaram contentes "por se livrarem de 600 mil católicos" e Wiranto, ministro da Defesa, dá um acordo tácito à ideia: poderia haver referendo desde que não houvesse revisionismo.
"Não podia sugerir-se que a intervenção das forças armadas em 1975 em Timor-Leste foi errada. Wiranto não se oporia a Habibie porque considerava que falharia na sua política, deixando assim as ambições políticas de Wiranto abertas", considera Woolcott.
O anúncio histórico é feito por Ali Alatas finda a reunião do Conselho de Ministros, na tarde de 27 de janeiro: a Indonésia admite a possibilidade de ser concedida a independência a Timor-Leste, se o povo timorense rejeitar um estatuto de autonomia.
Apesar da concessão de independência a Timor-Leste "não constituir política do governo", será "a última alternativa se o povo de Timor-Leste continuar a rejeitar a (...) oferta de autonomia" do governo indonésio, disse.
Habibie, que aprovou a reforma da lei de partidos na Indonésia - permitindo mais do que os três autorizados na era-Suharto - que avançou com a lei de autonomia regional, a primeira de descentralização do Governo, que fomentou a liberdade da imprensa e presidiu às primeiras eleições presidências livres da Indonésia, tem o referendo em Timor-Leste como a sua maior marca histórica.
Habibie abriu a porta às negociações a três com Portugal e as Nações Unidas, para o acordo de 05 de maio e para o referendo de 30 de agosto e libertou Xanana Gusmão (e mais dois prisioneiros políticos indonésio, os ativistas Sri Bintang Pamungkas e Muchtar Pakpahan).
Wolcott ainda insiste que a decisão de Habibie foi "irresponsável", especialmente por permitir uma independência imediata, sem a transição de cinco ou 10 anos que "os próprios líderes timorenses como Xanana Gusmão e José Ramos-Horta" defendiam.
Critica a postura australiana na altura e insiste que a "precipitação" de Habibie ajudou a criar as condições para a destruição pós-referendo.
Para os timorenses, porém, a irritação e o desespero de Habibie abriram uma janela fechada, à força e com a morte de mais de 200 mil pessoas, durante mais de um quarto de século.
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