Díli, 19 nov (Lusa) - Na manhã de 11 de fevereiro de 2008, José Ramos-Horta decidiu quebrar a sua rotina rigorosa e saiu de casa 15 minutos mais cedo do que o normal, para os exercícios matinais, na marginal ao longo do mar.
Menos de duas horas depois estava nas traseiras de uma ambulância no centro de Díli, com a sobrinha Dulce e o enfermeiro português Jorge Marques, a pedir ao condutor para ir mais devagar e a sangrar de três ferimentos de bala, um no estomago e dois nas costas.
"Disse ao condutor da ambulância: vá devagar. E a minha sobrinha, a Dulce, repetia: o Presidente está a dizer para ir devagar. Mas ele não. Ia a toda a velocidade. E eu com medo que nos íamos espetar em alguém", recordou em entrevista à Lusa.
"Ainda bem que não me ouviu porque quando chegámos ao hospital, praticamente tinha perdido os sentidos. Os médicos imediatamente começaram com a ressuscitação. Cem australianos fizeram fila para dar sangue. Tinha perdido mais de quatro litros. Se demorasse mais cinco minutos teria morrido por perda de sangue", explica.
Marcelo Caetano, soldado timorense e apoiante do ex-comandante da Polícia Militar e então rebelde Alfredo Reinado, baleou o Prémio Nobel nas costas, enquanto Ramos-Horta fugia e de novo, já com o então chefe de Estado no chão, a tentar esconder-se.
Não o soube na altura mas assim que a notícia do seu atentado começou a ser conhecida, as bolsas de conflitos que ainda permaneciam em vários pontos de Díli - restos dos grandes confrontos de 2006 - praticamente cessaram.
"O atentado imediatamente parou o conflito que havia nos bairros. Todos pararam de imediato. Faz lembrar quando o Mahatma Gandhi morreu e parou a violência", disse agora.
"Não quero de forma alguma comparar-me ao grande homem que foi Gandhi. Mas há situações em que a alguém conhecido acontece isto, as pessoas ficam chocadas e param", refere.
Ramos-Horta tinha dispensado os seus seguranças pessoais de virem tão cedo - "fiquem lá com as vossas famílias e venham mais tarde -, mas dois efetivos das FDTL [Forças de Defesa de Timor-Leste] da segurança da casa optam por acompanhar o chefe de Estado no exercício matinal.
"Saí de casa muito cedo. Ainda bem. Quando estava a regressar e eram 06:50 ouvimos tiros. Dissemos que os tiros vinham da casa. Ouvimos uma segunda rajada e confirmou-se. Aí disse, vou a casa", explica.
"Nunca imaginava que alguém estava a atacar a casa. Pensei que fosse disputa entre os efetivos das FDTL lá em casa. Estava preocupado com os familiares em casa. Não os podia abandonar", insiste.
Nos dias anteriores José Ramos-Horta tinha tentado mediar entre as autoridades timorense e Alfredo Reinado e o seu grupo, procurando que este descesse a Díli e se rendesse, procurando avançar com uma lei de amnistia para todos.
"Caminhei cautelosamente. Achei estranho. Total silêncio. Total vazio na rua. Naquele corredor da minha rua. Quando de repente o elemento das FDTL que vinha atrás diz: cuidado, alguém está aí", conta.
"Olhei, era um elemento do Alfredo, vi-o levantar a arma e fugi. E ele disparou e atingiu-me nas costas duas vezes. Uma já eu no chão a tentar escudar-me junto do muro e não consegui", relembra.
Esperou 20 minutos até ser socorrido "por uma ambulância velha, sem maca especial" onde, mais à frente, a caminho da clinica militar australiana e próximo do complexo onde a GNR estava alojada, entra o enfermeiro português Jorge Marques, do INEM [Instituto Nacional de Emergência Médica, de Portugal], que lhe dá o primeiro apoio.
"O estranho é que... Eu não sou herói. Nunca me meto em grandes aventuras, mas quando estou nas situações não entro em pânico. Em 2006, várias vezes enfrentei situações. Enfrentava grupos armados em bairros", sublinha.
"A minha única preocupação quando fiquei ferido foi o que vai acontecer a este país se eu morro. Eu disse isso aos seguranças que entretanto chegaram ao pé de mim", recorda.
Ramos-Horta é minimamente estabilizado e, para a viagem de avião até Darwin é colocado em coma induzido, com apoio respiratório e "apoio integro de vida". Um porta-voz do Careflight, a empresa responsável pelo transporte, explica à Lusa na altura que o estado de saúde do líder timorense estava "muito crítico".
É sujeito a várias intervenções cirúrgicas, fica em coma prolongado e vai recuperando lenta e progressivamente no Royal Darwin Hospital, de onde sai praticamente um mês depois, a 10 de março.
"Recordo-me de cada detalhe desde que dispararam sobre mim (...) do caminho para o heliporto, quando caí do assento várias vezes porque não havia cinto de segurança", relatou o Nobel da Paz no momento em que saía do hospital.
Quando finalmente regressa a Díli, semanas depois confronta os seus agressores, a quem acaba por perdoar.
"Confrontei todos os eles. E um deles durante o conflito em Díli esteve recolhido em minha casa. É de Atsabe. Dei-lhe guarida. Foi ele (que disparou). Marcelo Caetano, de Atsabe. Pediu desculpa e chorou", disse.
"E começou todo um processo de diálogo, de cicatrização. Fiz muito disso durante a minha Presidência", recorda.
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